domingo, 29 de junho de 2008

Fundação José Saramago - Primeiro aniversário

Nascemos há um ano, quando José Saramago assinou uma declaração que transmitia o impulso de que necessitávamos para nos constituirmos numa Fundação que se propunha objectivos públicos, claros e concretos. Logo tivemos de crescer, ter casa, documentos que dessem fé da nossa existência, em resumo, dar à vida os sonhos que tinhamos vivido durante o longo período de gestação que antecedeu o acto criador.
Agora já somos crescidos, temos um ano de vida e umas quantas experiências acumuladas:
Cumprimos as obrigações básicas, em cada manhã abrem-se as portas da sede da Fundação em Lisboa e ali, com Saramago trabalhando no seu escritório, articulam-se sonhos e possibilidades, a realidade que exige concretização e a necessária dose de entusiasmo sem a qual nada é possível.
Inaugurou-se a sede local de Azinhaga, um cibercafé-biblioteca-livraria para os conterrâneos de Saramago e para os que venham percorrer uma paisagem que já lhes é familiar por a terem lido em páginas memoráveis.
Abriu-se a biblioteca de Lanzarote, lugar de estudo e de intercâmbio de ideias. Os “Encontros na Biblioteca”, que Maria Kodama inaugurou, são uma das actividades principais a realizar periodicamente, mas não se pode esquecer também o trabalho de investigação que foi necessário realizar para que a Fundação César Manrique pudesse organizar a exposição “A consistência dos sonhos”, obra magnífica que, uma vez mais, a Fundação José Saramago reconhece e agradece.
Organizaram-se concertos em Lisboa, Madrid e Lanzarote, editou-se um livro de memórias que, por sua vez, inaugura uma linha gráfica, receberam-se alunos que querem saber que vem a ser isso de ler, atenderam-se estudiosos de vários continentes, pessoas interessadas no misterioso mundo das letras e dos autores, receberam-se projectos, obras de ensaio que requeriam fontes para avançarem e as encontraram na Fundação, e, sobretudo, convivimos com a matéria dos sonhos durante um ano.
Um ano não é muito, embora para a Fundação José Saramago seja tudo. Agora é o tempo da maturidade, apresentamo-nos
neste “sítio” electrónico, que será, como já o era o “blog”, um lugar de encontro de quem pela Literatura, sim, mas também pelos Gandes Direitos Universais, sintam predilecção e urgência de manifestar-se e realizar.
Às Universidades que, como a de Granada, em Espanha, e a Católica de Córdoba, em Argentina, para citar dois exemplos destacados, se somaram ao nosso empenhamento. Obrigado. Continuaremos a viajar juntos.
Aos Ministérios de Cultura de Portugal e Espanha, o nosso reconhecimento.
À Fundação César Manrique, nossos mestres, um abraço.
Aos pintores que colaboraram com a sua obra, aos escritores que estiveram, aos amigos que têm acompanhado a nossa vida neste primeiro ano e que ofereceram o melhor que tinham, o seu interesse e dedicação, todo o nosso afecto e a promessa de que não desmaiaremos quando o frio chegar.
No dia 10 de Julho, em Lisboa, celebraremos o primeiro aniversário. Será no Teatro de São Carlos e ao redor de Jorge de Sena e da sua magnífica obra de poeta, ficcionista e ensaísta. Para ouvir de novo a respiração da poesia e da música que a poesia contém ou se contém nela. O acto tem um título, “Jorge de Sena – Um regresso”, talvez porque queremos chegar, uma vez mais, ao coração de um autor português que, morreu fora da sua terra, mas dentro do seu idioma. Acto este em que será reclamado de todas as formas que a capacidade criadora dos sentimentos seja capaz de expressar.
E, por fim, para Rogério Ribeiro e Bartolomeu Cid dos Santos o nosso comovido carinho: foram os primeiros a retratar a obra de Saramago, os primeiros a morrer, são os mais amados dos nossos corações.

Nacimos ahora hace un año, cuando José Saramago firmó una declaración que transmitía el aliento que necesitábamos para constituirnos en una Fundación con objetivos públicos, claros y concretos. Luego necesitamos crecer, tener casa, documentos que dieran fe de existencia, en definitiva, poner en la vida los sueños acumulados mientras el periodo de gestación, tan largo.
Ahora ya somos mayores, tenemos un año de vida y unas cuantas experiencias acumuladas:
Porque hemos hecho los deberes, cada mañana abre sus puertas la sede de la Fundación en Lisboa y desde ella, con Saramago trabajando en su escritorio, se trata de articular sueños y posibilidades, la realidad que exige concreción y la necesaria dosis de entusiasmo sin la cual nada es posible.
Se inauguró la sede de Azinhaga, un cibercafé- biblioteca - librería para los coterráneos de Saramago y para los que van a recorrer un paisaje que ya es familiar a base de haberlo leído antes en páginas memorables.
Se abrió la biblioteca de Lanzarote, lugar de estudio y de intercambio de ideas. Los "Encuentros en la biblioteca" que inauguró María Kodama son una de las actividades periódicas y señeras, pero está también el trabajo de investigación, el que fue necesario realizar para que la Fundación César Manrique pudiera organizar la exposición "La consistencia de los sueños", obra magnifica que, una vez más, la Fundación Saramago reconoce y agradece.
Se han organizado conciertos en Lisboa, Madrid y Lanzarote, se ha editado un libro de memorias que, a su vez, inaugura una línea gráfica, se han recibido a escolares que quieren saber qué es esto de leer, tanto en Lisboa como en Lanzarote, se han atendido a estudiosos de varios continentes, a personas interesadas en el misterioso mundo de las letras y los autores, se han recibido proyectos, obras de ensayo que requirieron de fuentes para avanzar y las encontraron en la Fundación, y, sobre todo, se ha convivido con la materia de los sueños minuto a minuto durante un año.
Un año no es mucho, aunque para la Fundación José Saramago es todo. Ahora, en el tiempo de la madurez, nos presentamos
en este sitio electrónico, que será, como ya lo era el blog, un lugar de encuentro de quienes por la Literatura, sí, y también por los Grandes Derechos Universales sienten predilección y la urgencia de manifestarse y de realizar.
A las Universidades que, como la de Granada en España o la Católica de Córdoba, en Argentina, por citar dos ejemplos destacados, se han sumado a nuestro empeño, gracias y seguiremos viajando juntos.
A los Ministerios de Cultura de Portugal y España, nuestro reconocimiento.
A la Fundación César Manrique, nuestros maestros, un abrazo.
A los pintores que colaboraron con su obra, a los escritores que han estado, a los amigos que han seguido la vida este primer año y que han ofrecido lo mejor que tenían, su interés y dedicación, todo el afecto y la promesa de no desmayar cuando llegue el frío.
El 10 de julio, en Lisboa, celebraremos el primer aniversario. Será en el Teatro San Carlos y alrededor de Jorge de Sena y a su magnífica obra. Para oír de nuevo la respiración de la poesía y de la música que la poesía contiene o por ella es contenida. El acto tiene un título, "Jorge de Sena - Un regreso" , quizá porque queremos llegar, una vez más, al corazón del autor portugués que murió fuera de su tierra pero dentro de su idioma. En el que será reclamado de todas las formas que la capacidad creadora de los sentamientos sea capaz de expresar. Y por fin, para Rogerio Ribeiro y Bartolomeu Cid dos Santos nuestro cariño emocionado: fueron los primeros en retratar la obra de Saramago, los primeros en morir, son los más amados de nuestros corazones.

sexta-feira, 27 de junho de 2008

Cartaz do filme Blindness no Japão

quinta-feira, 26 de junho de 2008

Colecção de José Saramago da Biblioteca Nacional de Portugal

Já está disponível o site da Colecção de José Saramago da Biblioteca Nacional de Portugal. Este site foi apresentado no âmbito da exposição A Consistência dos Sonhos, patente no Palácio da Ajuda até ao próximo dia 27 de Julho. Do espólio fazem parte manuscritos, agenda, correspondência de José Saramago trocada com outros escritores portugueses. Com este site a Biblioteca Nacional, e o Arquivo de Cultura Portuguesa Contemporânea, dão mais um contributo para o conhecimento dos processos de construção da obra de José Saramago e para o seu enquadramento no panorama cultural português e internacional.
Um espaço a visitar!

Aqui fica a nota explicativa sobre os conteúdos disponibilizados:

«O sítio Web da Colecção de José Saramago da Biblioteca Nacional de Portugal assenta em duas vertentes: na disponibilização em linha de originais e na edição do inventário do acervo. Ficam acessíveis à investigação os manuscritos do autor que integram o fundo, bem como o testemunho da sua consagração como Escritor de renome internacional - o diploma do Prémio Nobel da Literatura de 1998. Fica também disponível o retrato integral da colecção, o inventário, que, organizando os documentos em função da sua tipologia e autoria, informa sobre a especificidade das peças.

O fundo foi constituído em 1994 por generosa dádiva de José Saramago, anunciada, em carta de 22 de Março, nos seguintes termos: Um dia destes, com vagar, vou dar uma volta aos meus desordenados arquivos. Há cartas, papéis, manuscritos que não tenho o direito de conservar como coisa minha, pois na verdade pertencem a todos. A primeira parte da documentação, entregue pouco depois, integra as séries Correspondência – cartas trocadas com Adolfo Casais Monteiro, José Rodrigues Miguéis e recebidas de Massaud Moisés – e Manuscritos de terceiros, onde se destacam obras de J. R. Miguéis. Posteriormente, em 1998, inicia a entrega de documentação aqui classificada como Manuscritos do Autor. No ano seguinte a colecção é acrescida com o diploma já referido – classificado como Documento biográfico - e a restante documentação das séries de Correspondência.

No que diz respeito a este último tipo de documentos, o inventário organiza-os por autor ou destinatário, regista as datas limite, os locais de emissão predominantes, o número total de documentos e, quando necessário, outra informação pertinente que permita ao investigador estabelecer a relação entre outras peças que integram o acervo. Complementa-se a descrição com uma breve nota sobre o assunto preponderante das missivas. Em termos gerais, trata-se de correspondência de personalidades da cultura portuguesa, situada entre 1952 e 1983, e reflecte, sobretudo, a actividade de José Saramago na Editorial Estúdios Cor, no Diário de Lisboa e no Diário de Notícias

Fátima Lopes
Arquivo de Cultura Portuguesa Contemporânea

quarta-feira, 25 de junho de 2008

Saramago apresenta prosa «límpida, quase transparente» de Mia Couto

Uma prosa «límpida, quase transparente», onde a naturalidade dos encontros chega a ser sedutora, preenche, segundo José Saramago, as páginas da mais recente obra de Mia Couto, Venenos de Deus, Remédios do Diabo, ontem apresentada em Lisboa.

Escrito num «assalto pelo sentimento do tempo», como o próprio moçambicano descreve, o romance conta a história de um jovem médico português que parte para Vila Cacimba, em Moçambique, em busca de uma mulata por quem se apaixonou sob a «luz branca» de Lisboa. Em terras africanas, o médico depara-se com mistérios e histórias nunca contadas e acaba por partir numa viagem de palavras e reflexões sobre o próprio sentido da vida, durante a qual se confronta com o pensamento de que «somos donos do tempo apenas quando o tempo se esquece de nós». Durante a apresentação da obra, numa livraria da capital, Mia Couto explicou que o tempo - ou a falta dele - era um assunto que precisava e ainda precisa de resolver mas que, não sendo «resolvível», tem de ser transformado em história, em poesia, em «não assunto». «O estilo a que geralmente um escritor é associado pode ser também uma prisão e pensei que me apetecia desfazer essa amarra. Apetecia-me não saber como escrever, então mergulhei no vazio», conta o escritor, que assinou já cerca de vinte títulos, entre romances, contos, poesia e crónicas. Mia Couto tentou mas José Saramago garante que não conseguiu. Para o Nobel, não existem diferenças significativas no estilo de Venenos de Deus, Remédios do Diabo e dos restantes livros do seu amigo e «camarada de trabalho», o que acaba por ser uma sorte para quem, como ele, admira todo o percurso do escritor moçambicano. «Acho que ele fez o mesmo - e isso parece-me uma virtude - contando outra história», afirmou Saramago. «Estou a gostar do livro, a gostar muito. Tem uma prosa límpida, quase transparente. Encanta-me e quase me seduz a forma como o Mia desenvolve situações que envolvem encontros. É tudo tão natural», descreveu. José Saramago referiu que Mia Couto foi um dos escritores que melhor soube reagir às mudanças trazidas pelo 25 de Abril, respondendo com uma enorme «liberdade criativa» às dúvidas que então surgiram entre os autores, habituados a enfrentar a censura.

Jornal Sol

terça-feira, 24 de junho de 2008

Marisa Paredes visitou A Consistência dos Sonhos

A actriz espanhola Marisa Paredes, um dos rostos emblemáticos do cinema espanhol, viajou até Lisboa para ver a Exposição A Consistência dos Sonhos, em exibição no Palácio Nacional da Ajuda, nesta cidade. Marisa Paredes, juntamente com a italiana Laura Morante e a portuguesa Maria de Medeiros, protagonizou um espectáculo, representado em vários países europeus, Itália, Espanha, Grécia, Portugal, entre outros, em que cada actriz dava voz, na sua própria língua, às mulheres dos livros de Saramago. O espectáculo, de singular beleza e austeridade cénica, foi produzido pela Sete Sóis, Sete Luas, uma produtora italiana que tem como objectivo aproximar as diferentes culturas europeias em espaços afastados dos circuitos comerciais mas aonde a curiosidade e o interesse se manifestam de forma indiscutível. Marisa Paredes foi acompanhada na sua visita à Exposição pelo marido, o director da Filmoteca Nacional de Espanha, José María Prado, autor da foto, e por Pilar del Río. José María Prado é também autor de um retrato fotográfico de José Saramago, de grandes proporções, o maior da Exposição, que pode ver-se na Sala de Pintura do Rei D. Luís do Palácio da Ajuda.

La actriz española Marisa Paredes, uno de los rostros emblemáticos del cine español, viajó a Lisboa para ver la Exposición "La consistencia de los sueños" que se exhibe en el Palacio de Ajuda de Lisboa. Marisa Paredes, junto con la italiana Laura Morante y la portuguesa María de Medeiros, protagonizó un espectáculo, representado en varios países europeos, como Italia, España, Grecia, Portugal entre otros, donde cada actriz daba voz, en su propio idioma, a las mujeres de los libros de Saramago. El espectáculo, de singular belleza y austeridad escénica, estuvo producido por "Sete Sois, Sete Luas", productora italiana que tiene como objetivo acercar las distintas culturas europeas en espacios alejados de los circuitos comerciales pero donde la curiosidad y el interés se manifiestan de forma indiscutible. Marisa Paredes estuvo acompañada en su visita a la exposición por su marido, el director de la Filmoteca Nacional de España José María Prado, autor de la fotografía, y por Pilar del Río. José María Prado es también autor de un retrato fotográfico de José Saramago, de grandes proporciones, el mayor de la exposición, que puede verse en la sala Rey Dom Luis del palacio de Ajuda.

Blindness já tem data de estreia

O filme Blindness, adaptação do romance de José Saramago, Ensaio Sobre a Cegueira, realizado por Fernando Meirelles, estreia a 13 de Novembro.


Distribuição Castello Lopes

segunda-feira, 23 de junho de 2008

A surpresa emocionada de María Kodama na Exposição A Consistência dos Sonhos

Quando María Kodama acabou de percorrer a Sala de Pintura do Rei D. Luís do Palácio da Ajuda não escondeu a emoção, talvez porque, tão habituada que está a saber que palavras e génio são matéria suficiente para erguer monumentos literários, conseguiu captar, de forma singular, a riqueza contida nos documentos mostrados na Exposição, a vida que encerram, sim, mas também um aroma especial como se de uma respiração se tratasse, um latejar que habita páginas de há sessenta anos, inéditas, até que agora podem ser finalmente contempladas num caderno de apontamentos, num sonho frustrado ou num encontro glorioso, num contrato que diz «sim, publicamos» ou na pintura que viu o mundo mudado porque assim o narrava o livro que serviu de inspiração a Rogério Ribeiro... A exposição sobre José Saramago emocionou María Kodama porque ela sentiu, passo a passo, o esforço de escrever, a alegria de ter escrito, a suspeita de que continuaremos a ler um autor que parece ter já o seu lugar na história e que no entanto toma café, ao cair da tarde, sentado com os amigos no jardim da sua casa lisboeta...
María Kodama é uma leitora privilegiada. Aprendeu com Borges anglo-saxão e islandês para poder ler textos fundacionais de literaturas magníficas. Lê continuamente, quando viaja e quando se encontra em qualquer canto do mundo. Lê e sabe entender a vida das palavras. Lê, vê, e vendo incorpora no seu ser mais experiências que irão reforçar a sua capacidade de emocionar-se. Por isso saiu emocionada do Palácio da Ajuda quando, em silêncio, descia as escadas. Por isso, quando o ministro português da Cultura, José António Pinto Ribeiro, se aproximou para saudá-la, elogiou a Exposição com palavras breves mas rotundas, e dizia «maravilhosa» e os olhos brilhavam de forma contagiosa e as mãos, entrelaçando-se uma e outra vez, expressavam que algo íntimo e profundo havia sucedido nas salas da Exposição. E sim, a comoção chegou e instalou-se em María Kodama quando, depois de ter visto originais, a semente de uma vida, o tempo de silêncio, as tentativas, o esforço de escrever o memorial de um convento que tanto trabalho deu, o convento e o livro, depois da invenção de uma vida mais a Pessoa-Reis, depois de ter visto a reconstrução da humildade com que o escritor escreve, depois disso, María Kodama viu uma agenda escrita com uma data e um nome. Dia 14 de Junho de 1986. Saramago tinha assinalado esse dia porque nesse dia conheceu a que viria a ser sua mulher. María teria assinalado esse dia porque nesse dia morreu Jorge Luis Borges que foi, e continua a ser, o centro da sua vida. «Houve uma substituição», disse María mais tarde. Não: essas substituições não existem, ainda que aconteçam circunstâncias que reconfortam e que podem ser apreciadas por aqueles que, como María, fazem da força da sensibilidade o empurrão necessário para cruzar a vida.
No dia 20 de Junho A Consistência dos Sonhos atingiu a maioridade porque, uma vez mais, revelou emoções ocultas. A Exposição cruzou um equador que os leitores atentos saberão apreciar. Quem sabe não seria de colocar, junto à folha que assinala o dia 14 de Junho, uma flor fresca: para Borges e para María Kodama, que tanto nos ensinam e a quem tanto amamos.

La sorpresa emocionada de María Kodama en la Exposición La Consistencia de los sueños

Cuando María Kodama acabó de recorrer la sala Dom Luis del Palacio de Ayuda no disimuló su emoción, quizá porque ella, tan habituada a saber que palabras y genio son materiales suficiente para levantar monumentos literarios, pudo percibir, de forma singular, la riqueza contenida en los documentos que se muestran en la exposición, la vida que encierran, sí, pero también un aroma especial que es como una respiración interior, un latido que habita en páginas de hace sesenta años, inéditas hasta que ahora por fin pueden ser miradas, en un cuaderno de notas, en un sueño frustrado o en un encuentro glorioso, en un contrato que dice "sí, publicamos" o en la pintura que vio mudado el mundo porque así lo contaba el libro que le sirvió de inspiración a Rogério Ribeiro... A María Kodama le emoción la exposición sobre José Saramago porque sintió, paso a paso, el esfuerzo de escribir, la alegría de haber escrito, la sospecha de que seguiremos leyendo a un autor que parece ya estar instalado en la historia y sin embargo toma café a la caída de la tarde, sentado con amigos en el jardín de su casa lisboeta...
María Kodama es una lectora privilegiada. Aprendió con Borges anglosajón e islandés para leer textos fundacionales de literaturas magníficas. Lee siempre, cuando viaja y cuando está en cualquier rincón del mundo. Lee y sabe entender la vida de las palabras. Lee, ve, y viendo, incorpora experiencias a su ser, más experiencias para fortalecer su capacidad de emoción. Por eso iba emocionada del Palacio de Ayuda cuando, en silencio, bajaba las escaleras. Por eso, cuando el Ministro de Cultura de Portugal, José Antonio Pinto Ribeiro, se acercó a saludarla, elogió la exposición con palabras breves aunque rotundas, decía "maravillosa" y los ojos le brillaban de forma contagiosa y las manos, entrelazándose una y otra vez, expresaban que algo íntimo y profundo había sucedido en la sala de exposiciones. Y sí, la conmoción vino y se instaló en María Kodama cuando, tras haber visto originales, la simiente de una vida, el tiempo de silencio, los tanteos, el esfuerzo de escribir el memorial de un convento que tanto trabajo dio, el convento y el libro, después de haberle inventado una vida más a Pessoa - Reis, después de haber visto la reconstrucción de la humildad con que el escritor escribe, después de eso, María Kodama vio una agenda escrita, con una fecha y un nombre. Era el 14 de junio de 1986. Saramago tenía señalado ese día porque conoció a la que iba a ser su mujer. María tenía señalado ese día porque murió Jorge Luis Borges, que había sido, y sigue siendo, el centro de su vida. "Hubo un relevo", dijo María más tarde. No: no existen esos relevos, aunque sí se dan circunstancias que reconfortan y que pueden ser apreciadas por quienes, como María, hacen de la fuerza de la sensibilidad el empuje necesario para cruzar la vida.
"La consistencia de los sueños" el 20 de junio alcanzó la mayoría de edad porque, una vez más, desveló emociones ocultas. La exposición cruzó un ecuador que los lectores atentos sabrán apreciar. Quizá habría que poner, junto a la hoja que señala el 14 de junio, una flor fresca: para Borges y María Kodama que tanto nos enseñan y a quienes tanto amamos.


Pilar del Río

Última hora - A Maior Flor do Mundo premiada em Chicago

A Maior Flor do Mundo venceu o Prémio de Melhor Argumento no Festival de Curtas-Metragens de Chicago. Na selecção oficial, efectuada a partir de mais de duzentos filmes, figuraram trabalhos de diferentes países, entre documentários e obras de ficção. A Maior Flor do Mundo vê assim reconhecida a sua qualidade, destacando-se o facto de ser o único filme de animação a vencer um Prémio no Festival.
O filme pode ser visto na exposição A Consistência dos Sonhos, patente no Palácio da Ajuda até dia 27 de Julho.
O DVD encontra-se disponível através da Fundação José Saramago.

Kodama entre o génio de Borges e as perguntas geniais de Saramago

Por Isabel Coutinho, Público

Palestra-colóquio ao final da tarde de sexta-feira, em Lisboa

José Saramago revelou-se um óptimo entrevistador. María Kodama, a última companheira de Jorge Luis Borges, riu-se às gargalhadas e lá foi respondendo às perguntas sérias, íntimas e prosaicas do Nobel português. "Como é que Borges dizia que te queria? Explica-nos, explica-nos!"
Já José Saramago tinha lido pela primeira vez o poema Elegia (1963), de Jorge Luis Borges, e estava a dizer para a assistência - que quase encheu o auditório da Biblioteca Nacional, sexta-feira à tarde em Lisboa -, que se tratava de "um belo poema, quase uma autobiografia", quando a sua mulher, Pilar del Río, irrompeu pelo palco vinda da plateia. "É um poema belíssimo mas ninguém ouviu nada", disse-lhe, enquanto ajustava os microfones em cima da mesa. O prémio Nobel da Literatura ainda balbuciou que alguém tinha ido mexer no seu microfone, mas Pilar del Río virou-se para os oradores e avisou: "Para todos e para sempre, o microfone tem que estar em frente à boca!" A plateia desatou às gargalhadas. "Pois", afirmou Saramago. "É a sua experiência de rádio", justificou-se perante os seus companheiros de mesa, que eram María Kodama - escritora, tradutora, companheira de Jorge Luis Borges por mais de vinte anos - e Carlos da Veiga Ferreira, o editor da Teorema, onde estão publicadas em português as Obras Completas do escritor argentino que morreu em 1986. "E então passemos a ler outra vez o poema porque não perdemos nada com isso", rematou o autor de Ensaio sobre a Cegueira. "Oh, destino, o de Borges,/ ter navegado pelos diversos mares do mundo/ ou pelo único e solitário mar de nomes diversos (...)/ e não ter visto nada ou quase nada/ senão o rosto de uma rapariga de Buenos Aires (...)", deu-se assim o mote para a palestra-colóquio E se falássemos de Borges?, uma conversa entre a viúva e o Nobel, organizada pela Fundação José Saramago, a que se seguirão outras dedicadas a escritores. No dia 10 de Julho, no Teatro Nacional de São Carlos, falar-se-á de Jorge de Sena. "Não achas que os leitores ficam prisioneiros dos contos de Borges?" - Saramago tem a intuição de que o acesso à obra do escritor argentino se faz pela leitura dos contos e que às vezes os leitores ficam só por aí. Esquecem que Borges foi um grande poeta. Kodama concordou. O que deu fama internacional a Borges foi a tradução dos seus contos e da sua prosa. Mas, revelou, "ele sempre se sentiu poeta". Mesmo a sua prosa é "uma prosa poética, tem um ritmo especial". Ele preferia ser recordado como poeta e não como contista. Mas como era muito exigente consigo próprio e perfeccionista, sentia uma nostalgia, pensava que nunca ia conseguir chegar a escrever "o poema". "Eu como leitora acho que muitas vezes o conseguiu, mas ele não o sentia da mesma maneira", concluiu María.
Borges começou por ser poeta. Mas a determinada altura teve um acidente. Magoou-se na cabeça numa janela aberta que estava a ser pintada, quando ia para casa de uma amiga, e sofreu uma septicemia. Na época não havia antibióticos, ficou às portas da morte, com febre e pesadelos. Quando melhorou, "milagrosamente", teve medo de ter perdido a capacidade intelectual, a capacidade para escrever poemas. "Então decide que vai escrever um conto porque se fracassasse não sentiria que estava louco ou que tinha perdido essa capacidade." Escreve então o seu conto Pierre Menard, autor de 'Quixote' (onde está a frase "Não queria compor outro Quixote - o que é fácil - mas 'o' Quixote"). A partir daí entra num longo período em que se dedica à prosa, aos contos, e escreve ensaios e crítica literária para jornais. "Quando perde a visão e percebe que lhe é difícil continuar a escrever, vai retomar a poesia. Porque era mais fácil decorar o texto por causa da rima, já que não podia passar ao papel imediatamente o que estava a pensar. "Começou pela poesia, por causa do acidente escreve prosa e mais tarde, por causa da cegueira, regressa à poesia. Na última fase, "já seguro de si", mistura as duas coisas, poesia e prosa. Como era Borges na vida de todos os dias?, quis saber Saramago. "É que Borges era um génio - e continua a ser apesar de já não estar entre nós - como é que se comporta um génio na vida de todos os dias?" A esta "questão prosaica" o escritor quis que Kodama respondesse francamente. Aprendia-se muito, disse ela, era notória a profundidade e diversidade do seu conhecimento. Tinha um enorme sentido de humor e contava muitas histórias da sua avó inglesa, que ele adorava. "Era um ser encantador, divino. Por vezes eu tentava que os meus colegas de turma fossem assistir às aulas de línguas anglófonas que ele me dava. Eles diziam-me: 'Não! Como queres que vamos contigo, ele é velho, os labirintos, os espelhos, por que é que não vens mas é sair connosco?' Eu respondia-lhes: 'Sim, ele é os labirintos, os espelhos, o que vocês quiserem, mas paralelamente a isso é uma pessoa divertidíssima com quem podemos passar momentos muito agradáveis e descobrir uma quantidade de coisas, intelectuais e não só, através do que nos conta." Apesar da sua sabedoria, disse Kodama, as pessoas não se sentiam intelectualmente inferiores a Borges. Sabia guiar as conversas. "Tinha muita consideração pelos outros. E tinha um sentido ético e de delicadeza no trato. Na sua obra também se reflecte isso: tudo está dito, mas tudo é dito de uma maneira especial."
Não há palavras para descrever o ar matreiro do escritor português quando anunciou a María Kodama que lhe ia colocar duas questões "muito íntimas". Durante toda conversa, que durou mais de uma hora, Saramago fez sempre perguntas interessantes, foi dizendo também aquilo que pensava sobre a obra do autor argentino, não fugiu a perguntas difíceis como a sua ligação com a ditadura. Estava visivelmente bem-disposto - a longa doença do ano passado parece estar finalmente a ficar para trás -, com 14 quilos a mais e a recuperar pouco a pouco a massa muscular. "Estavas realmente interessada em aprender inglês antigo ou foste aprender inglês antigo para conhecer Borges?", foi a primeira. Seguiu-se a segunda: "Como é que Borges dizia que te queria?... Explica-nos, explica-nos!" Foi então quando Kodama tinha cinco anos que teve aulas com uma professora de inglês que utilizava um método de lhe ler os textos no original e depois traduzir em espanhol. Leu-lhe um poema em inglês de Borges, do qual Kodama não entendeu nada mas sentiu que havia algo ali que a fazia sentir próximo dele (a solidão). Aos 12 anos, um amigo do pai, que era fanático de Borges, levou-a a ouvir uma conferência do escritor e ela impressionou-se com a sua timidez. Anos depois, já no colégio, viu Borges do outro lado da rua. Vai ter com ele: "Conheci-o quando era uma miúda." Ele riu-se: "Claro, agora você é grande. Em que trabalha?" Ela respondeu-lhe: "Estou a terminar o secundário." Quer estudar o inglês arcaico?, pergunta-lhe ele. "Shakespeare?", arrisca ela. "Não, muito anterior, século X." "Então se calhar é complicado", diz-lhe ela mas ele convence-a, dizendo que vão estudar juntos. Passam a encontrar-se em cafés de Buenos Aires, ele aparecia com os dicionários debaixo do braço. "Divertíamo-nos muitíssimo". E a vida foi-lhes dando outra história que terminou, realmente, "em amor". "E a segunda pergunta?", insistia José Saramago. Kodama ria-se ao início e depois já estava às gargalhadas. "Que palavras utilizava para dizer que te queria...", continuava o autor português. "Isso é importantíssimo. Posso não ser um bom escritor, mas a fazer perguntas sou um génio!", brincou o Nobel, que assim pôs a sala inteira a rir à gargalhada. María e Jorge usavam vários nomes, a maior parte ligados à literatura. "Um desses nomes era tirado de um conto que ele me tinha dedicado em segredo e que se chama Ulrica (in O Livro da Areia). Quis gravá-lo no túmulo em Genebra e em lugar de María Kodama e de Borges coloquei o epitáfio 'De Ulrica a Javier Otárola', porque eram nomes muito especiais para nós. Ulrica vinha também um pouco da Elegia de Marienbad, de Goethe, que ele me recitava em alemão. Ulrike von Levetzow era o nome da jovem amante de Goethe e quando ele fazia amor com ela contava as sílabas nas suas costas, acariciando-as com a mão. Bem, já está dito." E María Kodama e José Saramago prosseguiram com outro assunto antes que a conversa ficasse mais complicada.

domingo, 22 de junho de 2008

E se falássemos de Borges? nas páginas do DN

Foi com a leitura do poema Elegia que se iniciou na passada sexta-feira, na Biblioteca Nacional, a conversa entre José Saramago e a escritora e tradutora María Kodama, antiga companheira de Jorge Luis Borges. Depois de um encontro em Lanzarote, os dois autores voltaram a reunir--se em debate público com a vida e obra de Borges como pano de fundo. A palestra-colóquio intitulada "E se falássemos de Borges?", organizada pela Fundação José Saramago, é um dos primeiros eventos que esta instituição criou para "mexer com o movimento literário nacional", como revelou a presidente da fundação, Pilar Saramago, que anunciou mais iniciativas. A primeira ocorrerá dia 10 de Julho no Teatro São Carlos e será uma sessão em torno da obra de Jorge de Sena, com a presença dos escritores Eduardo Lourenço, Pedro Tamen e Jorge Fazenda Lourenço. Saramago adiantou também futuras sessões dedicadas a José Rodrigues Miguéis e Raul Brandão. Apesar de terem sido os contos do escritor argentino que "lhe deram grande fama internacional", María Kodama revelou à plateia que "Borges sempre se sentiu um poeta e queria ser recordado como tal, mas tinha constantemente a preocupação de não conseguir chegar ao poema perfeito". A antiga companheira de Borges recordou que a primeira fase da obra do argentino foi dedicada à poesia, mas "depois de ter sofrido um grave acidente na cabeça receou ter perdido a capacidade intelectual para escrever poemas". Devido a este acontecimento, o escritor voltou-se para a escrita de contos. Mais tarde, "quando perde a visão retoma a escrita de poemas, uma vez que eram de fácil memorização". Borges foi definido por María Kodama como "uma pessoa tímida", o que contrasta com os seus relatos de "uma extrema desumanidade", como descreveu Saramago. No entanto, a viúva de Borges justificou tal violência lembrando o passado do escritor. "Em pequeno, Jorge ouviu muitos relatos violentos e, mais tarde, viu matar um homem no Uruguai."A relação de Borges com a política foi "muito complexa". No seu país foi acusado de ser um "traidor", lembrou Kodama. Por isso ele considerava a Suíça, onde viveu e acabou por falecer, "um exemplo do que podia ser o mundo se todas as pessoas fossem tolerantes e convivessem pacificamente com quem é diferente". O poema Os Conjurados, lido por Fernando Pinto do Amaral, retrata esta visão do escritor argentino. No final, Saramago foi questionado quanto à actualidade da obra de Jorge Luis Borges. O escritor comparou Borges a "um fisioterapeuta que põe a funcionar tudo o que está dentro do corpo, o que faz bem à saúde". Nesta iniciativa estiveram presentes a secretária de Estado da Cultura, Maria Paula Fernandes dos Santos, o embaixador da Argentina, Jorge Faurie, o escritor Rui Zink e Carlos da Veiga Ferreira, editor da Teorema, que publicou grande parte da obra do escritor argentino.

Notícia publicada na edição online do Diário de Notícias de 22 de Junho de 2008.

sábado, 21 de junho de 2008

Falando de Borges


E foi de Borges que se falou ontem.
Em tom informal, José Saramago e María Kodama uniram a experiência de leitura à memória vivencial. Lucidamente, evocaram o génio, destacando a sua modernidade, a sua liberdade, a sua imaginação.

Esta conversa estará disponível a partir de segunda-feira, dia 23 de Junho, no site da RDP, programa A Força das Coisas.

sexta-feira, 20 de junho de 2008

Entrevista de María Kodama ao Diário de Notícias

Hoje!

Jorge Luis Borges - Biblioteca de Babel

[...] Tal como todos os homens da Biblioteca, viajei na minha juventude; peregrinei em busca de um livro, se calhar do catálogo dos catálogos; agora que os meus olhos quase não conseguem decifrar o que escrevo, preparo-me para morrer a poucas léguas do hexágono em que nasci. Morto, não faltarão mãos piedosas que me atirem pela balaustrada; a minha sepultura será o ar insondável; o meu corpo precipitar-se-á lon­gamente até se corromper e dissolver no vento gerado pela queda, que é infinita. Eu afirmo que a Biblioteca é interminável. [...]

Borges
, Jorge Luis, Ficções (Obras Completas Vol.I), Lisboa, Teorema

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Entrevista de José Saramago ao jornal Público e à Rádio Renascença

"Não sou um exemplo do que é viver neste mundo"

15.06.2008

Maria José Oliveira (PÚBLICO) e Paulo Magalhães (Renascença)

Ainda em convalescença, José Saramago diz que a pneumonia lhe fez "bem". Porque "relativizou tudo" e lhe deu "serenidade"

José Saramago afirma que foi a primeira vez que se "atreveu" a dizê-lo: se existe alguma mensagem nos seus livros, ela está no momento em que um cão lambe as lágrimas de uma mulher, no romance Ensaio sobre a Cegueira. É por essa passagem que o Prémio Nobel da Literatura (1998) gostaria de ser recordado no futuro. Em conversa com o PÚBLICO e a Rádio Renascença, Saramago comentou a suposta gaffe de Cavaco Silva, lamentou o espírito de resignação dos portugueses e falou sobre a pneumonia que o deixou às portas da morte. Em Lisboa, onde vai ficar até meados de Julho, continua a escrever todos os dias as páginas do seu próximo romance, A Viagem do Elefante, que deverá estar concluído em Agosto. Há muita gente em Portugal que não gosta da sua obra. É uma pessoa polémica...

É estranho que comecemos por aí, pelas pessoas que não gostam daquilo que eu digo ou daquilo que eu faço. Não vou dizer que lamento. Faço o meu trabalho e não roubei o lugar a ninguém. Na arte não se rouba o lugar: ocupa-se o seu próprio lugar. Foi o que eu fiz. Há posições extremadas. Ou se ama ou se odeia. Acho muito bem. Não estamos com meias-tintas. Mas há ainda uma outra categoria, mais reduzida, de pessoas que não leram e não gostam.
Que imagem tem do seu país e dos seus compatriotas? Tenho sido severo, algumas vezes. Mas houve uma altura em que disse que gostava daquilo que este país fez de mim - é um dos melhores elogios que se pode fazer. Verifico com pena que continuamos com pouca ousadia no que se refere a projectos e à sua realização. Comparo o nosso país com uma pessoa que está na borda do passeio à espera que alguém a ajude a atravessar para o outro lado. Estamos sempre à espera de alguém que venha salvar a pátria. O grande problema nacional é a mediocridade e a resignação à mediocridade. O que é um pouco contraditório. Porque temos sonhos de grandeza e o Campeonato Europeu de Futebol é um caso. Fala em falta de espírito crítico. Onde é que isso se nota no dia-a-dia? No comportamento dos cidadãos. Há quem opine criticamente nos jornais. Mas o cidadão médio tem uma preguiça enorme em riscar as opiniões que não sejam aquelas que se trocam por miúdos ao longo do dia. Há três ou quatro ou 50 problemas grandes no mundo. Não vejo a participação dos portugueses nos debates de todas essas coisas. De onde é que vem essa falta de participação? Não sei se é congénito, não sei o que se passa connosco. Connosco incluindo José Saramago? Incluindo-me a mim. Se não fosse isso, seria muito melhor do que aquilo que sou. Que já não estou nada mau. Hoje é Presidente da República o homem que era primeiro-ministro quando decidiu ir para Lanzarote... Sim, senhor. Bom proveito vos faça. Esse primeiro-ministro é hoje Presidente da República. Como é que vê o seu mandato? Nem olho para ele. Refiro-me ao mandato. Há pouco falou-se nas pessoas que não gostam de mim. Pronto, eu também não gosto do professor Cavaco Silva. É o meu direito. E de vez em quando ele dá-me razão. Há dias saiu-se com essa do dia da raça. Não foi um deslize, uma gaffe? Se ele disse dia da raça é porque pensa efectivamente que deveria chamar-se assim, embora não ouse fazer essa proposta. O Presidente deveria ter feito um pedido de desculpas público? Os políticos dificilmente pedem desculpa às pessoas a quem de alguma maneira ofenderam. Consideram-no uma pessoa céptica ou pessimista. Revê-se nisso? Não sou uma espécie de narciso que se vê ao espelho e diz "olha que bom, que pessimista que tu és". Parece que o que é bom é ser optimista. Mesmo que não haja nenhuma razão para isso. Há pessoas que têm razões para estarem contentíssimas com o mundo, têm tudo o que querem. O que é que lhe falta? Não me falta nada. Mas eu não sou um exemplo do que é viver neste mundo. Sou um privilegiado. Mas não posso estar contente. O mundo é o inferno. Não vale a pena ameaçarem-nos com outro inferno porque já estamos nele. A questão é saber como é que saímos dele.

Saul Bellow, também Nobel da Literatura, dizia que à medida que ia envelhecendo ia encurtando frases e as suas obras foram ficando mais magras... Escrevo menos frases longas e o livro fica mais pequeno. A idade tem uma influência grande. Não é agora, aos 85 anos, que eu poderia lançar-me a escrever o Memorial do Convento ou o Evangelho segundo Jesus Cristo. Porque olho para o calendário e pergunto: ainda estarei vivo daqui por um ano? Pensou na morte quando esteve doente? Era inevitável que pensasse. Estive muito perto dela. Se me falarem sobre a morte digo: sim, já sei, estive à porta. Não cheguei a entrar, mas estive à porta. Aceitei essa probabilidade com uma serenidade enorme. Serenidade que conservo hoje. De certa forma, diria que me fez bem aquela doença. Relativizou tudo. Estou a escrever um livro [A Viagem do Elefante] e não quero morrer antes de acabá-lo. Uma das minhas preocupações quando estava entre cá e lá, numa espécie de limbo em que a consciência de mim mesmo não era absoluta, era a de que talvez não pudesse acabar o livro. Afinal, ainda hoje escrevi mais uma página. Lá para Agosto estará terminado. Como é que gostava de ser recordado? O Nobel português?
Gostaria de ser recordado como o escritor que criou a personagem do cão das lágrimas [Ensaio sobre a Cegueira]. É um dos momentos mais belos que fiz até hoje enquanto escritor. Se no futuro puder ser recordado como "aquele tipo que fez aquela coisa do cão que bebeu as lágrimas da mulher", ficarei contente. Se alguém procurar naquilo que eu tenho escrito uma certa mensagem, atrevo-me pela primeira vez a dizer que essa mensagem está aí. A compaixão dessa mulher que tenta salvar o grupo em que está o seu marido é equivalente à compaixão daquele cão que se aproxima de um ser humano em desespero e que, não podendo fazer mais nada, lhe bebe as lágrimas.

"Não vou sentar-me outra vez no banco da escola primária"

15.06.2008

A ratificação do Acordo Ortográfico é algo que não agrada muito a José Saramago. Até porque não se deve mexer naquilo que deu "bons resultados". Contudo, o escritor considera que o futuro da língua poderia estar "bastante comprometido" sem a existência deste acordo. Na reedição das suas obras, a mudança de grafia será feita por revisores. Aos 85 anos, Saramago diz que já não tem paciência para recorrer constantemente ao dicionário nem para regressar aos bancos da escola primária. As reedições das suas obras vão ter de aplicar o Acordo ortográfico. O que lhe parece? E que importância tem? Em 1911 fizemos uma reforma ortográfica, suponho que por decreto, e sobrevivemos ao choque. Que não deve ter sido muito grande porque não se manejam reacções nesse tempo contra o acordo ortográfico. Não deixou rasto. Ao longo da minha vida passei por algumas coisas dessas, que não eram exactamente reformas ortográficas, mas apareciam algumas coisas dessas. Aprendi a escrever a palavra mãe com "e" no final, depois veio uma reforma gráfica e passei a escrever com "i" final. Depois veio outra e passei a escrever com "e" novamente. Agora estamos em algo mais vasto e complexo que não me agrada completamente. Nestas matérias sou bastante conservador: o que está e deu bons frutos e bons resultados não se mexe. Mas tenho de compreender uma coisa: o futuro do português que escrevemos poderia estar bastante comprometido se não houvesse este acordo. É certo que haverá por parte de muita gente uma certa relutância em escrever acto sem "c" quando até agora escrevíamos com "c". Mas o Brasil tem 200 milhões de habitantes, creio. Podemos com os nossos dez milhões impor à sociedade mundial a nossa norma por isto ou por aqueloutro. Apresentem as razões. Há aí um grupo de pessoas que respeito muito que não estão de acordo comigo. Mas creio que temos de embarcar nesse comboio mesmo que não gostemos muito. Não há outro remédio. Vai começar a escrever acto sem a letra "c"?
Vou continuar a escrever como escrevo hoje. Não vou querer estar a ir constantemente ao dicionário ver se se escreve com "c" ou não. Os revisores encarregam-se disso. Isto vai até 2015, creio, e vamos ter de actualizar dicionários. Agora que eu tenho 85 anos não vou sentar-me outra vez no banco da escola primária para aprender a escrever. Isso faço eu. Há uns apêndices que caem para outra pessoa, neste caso o revisor, que se encarregará de limpar a prosa.
"Em 1911 fizemos uma reforma ortográfica, suponho que por decreto, e sobrevivemos ao choque", afirma José Saramago.

Entrevista publicada no jornal Público (edição impressa) de 15.06.2008 e transmitida no programa Diga Lá Excelência de 14.06.2008

A Consistência dos Sonhos pelo olhar de Isabel Coutinho

sábado, 14 de junho de 2008

José Saramago no programa Diga Lá Excelência

No programa Diga Lá Excelência de hoje, com transmissão prevista na RTP 2, pelas 21 Horas, José Saramago é entrevistado por jornalistas da Rádio Renascença e do jornal Público. Serão cinquenta minutos de conversa, abordando diferentes temas e assuntos.
O programa repete na RTP Internacional e na RTP África na próxima quarta-feira, dia 18 de Junho, pelas 2.15 Horas e poderá ser visto na página da RTP, neste endereço.

quinta-feira, 12 de junho de 2008

E se falássemos de Borges?