Uma prosa «límpida, quase transparente», onde a naturalidade dos encontros chega a ser sedutora, preenche, segundo José Saramago, as páginas da mais recente obra de Mia Couto, Venenos de Deus, Remédios do Diabo, ontem apresentada em Lisboa.
Escrito num «assalto pelo sentimento do tempo», como o próprio moçambicano descreve, o romance conta a história de um jovem médico português que parte para Vila Cacimba, em Moçambique, em busca de uma mulata por quem se apaixonou sob a «luz branca» de Lisboa. Em terras africanas, o médico depara-se com mistérios e histórias nunca contadas e acaba por partir numa viagem de palavras e reflexões sobre o próprio sentido da vida, durante a qual se confronta com o pensamento de que «somos donos do tempo apenas quando o tempo se esquece de nós». Durante a apresentação da obra, numa livraria da capital, Mia Couto explicou que o tempo - ou a falta dele - era um assunto que precisava e ainda precisa de resolver mas que, não sendo «resolvível», tem de ser transformado em história, em poesia, em «não assunto». «O estilo a que geralmente um escritor é associado pode ser também uma prisão e pensei que me apetecia desfazer essa amarra. Apetecia-me não saber como escrever, então mergulhei no vazio», conta o escritor, que assinou já cerca de vinte títulos, entre romances, contos, poesia e crónicas. Mia Couto tentou mas José Saramago garante que não conseguiu. Para o Nobel, não existem diferenças significativas no estilo de Venenos de Deus, Remédios do Diabo e dos restantes livros do seu amigo e «camarada de trabalho», o que acaba por ser uma sorte para quem, como ele, admira todo o percurso do escritor moçambicano. «Acho que ele fez o mesmo - e isso parece-me uma virtude - contando outra história», afirmou Saramago. «Estou a gostar do livro, a gostar muito. Tem uma prosa límpida, quase transparente. Encanta-me e quase me seduz a forma como o Mia desenvolve situações que envolvem encontros. É tudo tão natural», descreveu. José Saramago referiu que Mia Couto foi um dos escritores que melhor soube reagir às mudanças trazidas pelo 25 de Abril, respondendo com uma enorme «liberdade criativa» às dúvidas que então surgiram entre os autores, habituados a enfrentar a censura.
Jornal Sol
Jornal Sol